A Turquia e o Brasil são duas potências regionais em rápido desenvolvimento que começaram a ocupar os seus lugares no cenário global. Mas ambos estão agora a lidar com a agitação popular dirigida contra as acções do governo que consideraram alguns manifestantes arrogantes e insensíveis, como observa o ex-analista da CIA Paul R. Pillar.
Por Paul R. Pilar
O momento é provavelmente uma coincidência, mas é difícil não notar como os distúrbios populares que abalaram as principais cidades do Brasil surgiram logo após os grandes protestos de rua na Turquia. Trata-se, evidentemente, de dois países muito importantes, que exercem um peso considerável em assuntos que vão muito além das suas próprias fronteiras.
Um deles é um dos BRICS e o maior país do hemisfério ocidental depois dos Estados Unidos. O outro situa-se numa junção crítica entre a Europa e o Médio Oriente e é um interveniente fundamental na resolução de problemas como a guerra na Síria.
Os dois até trabalharam juntos em algumas questões de importância para os Estados Unidos, principalmente na mediação de um acordo sobre o programa nuclear do Irão com o qual Teerão concordou e que, se os Estados Unidos não tivessem recuado numa fórmula que uma vez se propuseram, poderiam nos colocaram no caminho para resolver esta questão.
Seria fácil descartar qualquer ligação entre as situações na Turquia e no Brasil, dadas as diferenças óbvias. As questões explícitas imediatas são diferentes: proposta de redesenvolvimento de um parque e praça da cidade num caso; aumento das tarifas de trânsito no outro. Os governos em exercício não são nada parecidos, um deles tendo um líder de longa data que lidera um partido moderadamente islâmico, e o outro um presidente mais recente liderando um movimento esquerdista.
Mas uma semelhança muito importante é que ambas são democracias. Não só isso, mas as democracias que, embora cada uma tenha um exército que esteve envolvido na política num passado não muito distante, passaram a ser consideradas estáveis, esperando-se agora que os seus exércitos permaneçam nos quartéis.
Isso levanta a questão: por que deveria haver tais protestos? Os governos contra os quais protestaram foram eleitos livre e democraticamente. Com a urna disponível, por que deveria haver recurso à rua?
Várias linhas possíveis de investigação vêm à mente. Podemos estar a assistir a um processo de perda de contacto entre os titulares do poder e os seus eleitores ao longo do tempo, especialmente quando os titulares ou os seus partidos estão no poder há muito tempo. Alguns sugeriram que isto é verdade especialmente no caso do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan.
Mesmo os líderes democraticamente eleitos podem vir a ter uma sensação inflada de saberem melhor do que os cidadãos o que é do interesse dos próprios cidadãos. E mesmo os líderes eleitos democraticamente podem ter uma tendência a favor do que é chamativo, prestigioso ou simbólico, em vez do que afecta a vida quotidiana da maioria das pessoas.
No caso da Turquia, isto inclui o desejo de Erdogan de relembrar as glórias otomanas com a estrutura que pretende erguer no lugar do parque que tem estado no centro dos protestos em Istambul. No caso do Brasil, isto inclui enormes recursos gastos na organização da Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos, recursos indisponíveis para muitos outros programas que afetariam o bem-estar dos brasileiros comuns.
Não há dúvida de que há também muita sociologia a ser explorada por parte dos manifestantes. Provavelmente podem ser escritas dissertações que possam explicar parte do que estamos a ver em termos de mudança geracional, evolução das estruturas de classe, ou algo semelhante. Enquanto se aguarda o desenvolvimento de tal conhecimento e quaisquer melhores explicações para o que tem acontecido nas ruas destes dois países, podem ser feitas mais algumas observações gerais.
Uma delas é que mesmo as democracias relativamente estáveis e bem estabelecidas são mais frágeis do que gostaríamos de pensar. E antes de sermos demasiado arrogantes ao distinguir a nossa própria democracia das do Brasil e da Turquia, recordemos que os Estados Unidos tiveram a sua quota de distúrbios desagradáveis nas suas ruas num passado não distante. A mesma questão sobre por que razão um governo eleito democraticamente deveria ser alvo de acção nas ruas pode ser aplicada aos Estados Unidos, bem como ao Brasil e à Turquia.
Uma observação relacionada é que, embora a democracia representativa ainda seja a forma menos má de governo e a que melhor consegue alinhar as acções dos governantes com os interesses dos governados, ainda apresenta deficiências. Não resolve todos os problemas de estabilidade e capacidade de resposta. Deveríamos lembrar-nos disto sempre que nos sentirmos tentados a pensar na democratização como uma cura para qualquer doença estrangeira em que nos estejamos a concentrar neste momento.
Uma observação final é que estes distúrbios foram evidentemente uma surpresa mesmo para aqueles que estavam no poder nos países envolvidos e, portanto, tinham o maior interesse em serem capazes de antecipar os problemas. Deveríamos lembrar-nos disto na próxima vez que formos tentados a repreender os nossos próprios especialistas ou agências governamentais por não preverem tais coisas que acontecem no estrangeiro.
Paul R. Pillar, em seus 28 anos na Agência Central de Inteligência, tornou-se um dos principais analistas da agência. Ele agora é professor visitante na Universidade de Georgetown para estudos de segurança. (Este artigo apareceu pela primeira vez como um post de blog no site do Interesse Nacional. Reimpresso com permissão do autor.)
Em 2010, a Turquia e o Brasil estiveram envolvidos na mediação de um acordo “nuclear” com o Irão para combater os tambores de guerra que foram rejeitados por Israel e pelos EUA.
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Ambos os países nunca foram perdoados e estão a ser punidos pelo seu atrevimento.