BRICS foi criado como ferramenta de ataque, diz Lula preso

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O ex-líder brasileiro deseja que as economias emergentes estivessem mais próximas; recorda que Obama “invadiu” a reunião sobre o clima em Copenhaga, escreve Pepe Escobar.

By Pepe Escobar
em Curitiba, Brasil
Asia Times

IEm uma ampla entrevista exclusiva de mais de duas horas de uma sala de prisão em Curitiba, no sul do Brasil, na semana passada, o ex-presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva ressurgiu pela primeira vez, depois de mais de 500 dias de prisão, e enviou uma mensagem clara ao mundo.

Em meio ao frenesi da mídia 24 horas por dia, 7 dias por semana, de frases de efeito roteirizadas e “notícias falsas”, é virtualmente impossível encontrar um atual ou ex-chefe de Estado em qualquer lugar, em uma conversa com jornalistas, disposto a falar do fundo de sua alma, a comentar sobre todas as questões atuais. desenvolvimentos políticos e gosto de contar histórias sobre os corredores do poder. E tudo isso enquanto ainda estava na prisão.

A primeira parte desta minissérie focada na Amazônia. Aqui, focaremos no relacionamento do Brasil com os BRICS e Pequim. BRICS é o agrupamento das principais economias emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China – que se formou em 2006 e depois incluiu a África do Sul nas suas reuniões anuais a partir de 2010.

A minha primeira pergunta a Lula foi sobre os BRICS e o actual tabuleiro de xadrez geopolítico, com os EUA a enfrentarem uma parceria estratégica Rússia-China. Como presidente, de 2003 a 2010, Lula foi fundamental na formatação e expansão da influência dos BRICS – em nítido contraste com o actual Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que parece estar convencido de que a China é uma ameaça.

Lula enfatizou que o Brasil deveria estar se aproximando da China em um processo espelhado do que ocorreu entre a Rússia e a China: “Quando houve uma cúpula do BRICS aqui no estado do Ceará, no Brasil, eu disse à camarada Dilma [Rousseff, a ex-presidente] que nós deveria organizar um pacto como o pacto Rússia-China. Um pacto enorme dando aos chineses parte do que eles queriam, que era a capacidade do Brasil de produzir alimentos e energia e também a capacidade de ter acesso ao conhecimento tecnológico. O Brasil precisava de muita infraestrutura. Precisávamos de trens de alta velocidade, muitas coisas. Mas no final isso não aconteceu.”

Assistir CN ao vivo! entrevista com Pepe Escobar em sua entrevista com Lula:

Lula definiu as suas principais prioridades ao apoiar a criação dos BRICS: autonomia económica e união de um grupo de nações capazes de ajudar o que o consenso de Washington descreve como PMDs – países menos desenvolvidos.

Ele enfatizou: “O BRICS não foi criado para ser um instrumento de defesa, mas para ser um instrumento de ataque. Assim, poderíamos criar a nossa própria moeda para nos tornarmos independentes do dólar americano nas nossas relações comerciais; criar um banco de desenvolvimento, o que fizemos – mas ainda é muito tímido – para criar algo forte, capaz de ajudar o desenvolvimento das partes mais pobres do mundo.”

Lula fez referência explícita aos temores dos Estados Unidos em relação a uma nova moeda: “Essa era a lógica do BRICS, fazer algo diferente e não copiar ninguém. Os EUA ficaram com muito medo quando discuti uma nova moeda e Obama telefonou-me e disse-me: 'Estão a tentar criar uma nova moeda, um novo euro?' Eu disse: 'Não, só estou tentando me livrar do dólar americano. Só estou tentando não ser dependente.'”

Pode-se imaginar como isso aconteceu em Washington.

Obama pode ter tentado alertar Lula de que o “Estado Profundo” dos EUA nunca permitiria que os BRICS investissem numa moeda ou num cabaz de moedas para contornar o dólar americano. Mais tarde, Vladimir Putin e Erdogan alertariam a Presidente Dilma – antes de ela sofrer o impeachment – ​​que o Brasil seria um alvo impiedoso. No final, a liderança do Partido dos Trabalhadores foi apanhada totalmente despreparada por uma conjunção de sofisticadas técnicas de guerra híbrida.

Uma das maiores economias do mundo foi dominada por neoliberais radicais, praticamente sem qualquer luta. Lula confirmou na entrevista, dizendo: “Devíamos ver onde erramos”.

Lula também atingiu uma nota de decepção pessoal. Ele esperava muito mais dos BRICS. “Imaginei um BRICS mais agressivo, mais proativo e mais criativo. «O império soviético já caiu; vamos criar um império democrático.' Acho que fizemos alguns avanços, mas avançamos lentamente. Os BRICS já deveriam estar muito mais fortes.”

Lula, Obama e China

É fácil imaginar como aconteceu o que se seguiu em Pequim. Isso explica, em grande medida, o imenso respeito que Lula goza entre a liderança chinesa. E também é relevante para o atual debate global sobre o que está acontecendo na Amazônia. Deixe apenas Lula contar a história à sua maneira inimitável e com toque de Garcia Márquez.

“Uma coisa que os chineses devem lembrar é que muita gente ficou irritada no Brasil quando reconheci a China como uma economia de mercado. Muitos dos meus amigos foram contra. Mas eu disse: 'Não, quero os chineses na mesa de negociações, não fora dela. Existe alguma discórdia? Coloque-os dentro da OMC, vamos legalizar tudo.' Sei que [o presidente chinês] Hu Jintao ficou muito satisfeito.

“Outra coisa que fizemos com a China foi na COP-15 [Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas], em Copenhague, em 2009. Deixe-me dizer uma coisa: cheguei na COP-15 e havia uma lista de pessoas solicitando audiências comigo – Angela Markel, Sarkozy, Gordon Brown; Obama já havia telefonado duas vezes – e eu não sabia por que era importante. O que todos eles queriam? Todos queriam que concordássemos, na COP-15, que a China era o principal mal poluente do planeta. Sarkozy veio falar comigo com uma linha de montagem cinematográfica, eram 30 câmeras, um verdadeiro espetáculo: Lula acusando a China. Depois tive uma série de reuniões e disse a todos: 'Olha, eu sei que a China é poluente. Mas quem vai pagar pela poluição histórica que vocês perpetraram antes da China poluir? Onde está a comissão de história para analisar a industrialização inglesa?''

“Então algo fantástico aconteceu. Não estava à vista um acordo, eu queria que Sarkozy falasse com Ahmadinejad – mais tarde conto-vos isto sobre o Irão [ele disse, mais tarde na entrevista]. Ahmadinejad não foi ao nosso jantar, por isso não houve reunião. Mas aí a gente estava discutindo, discutindo, e eu falei para o Celso [Amorim, ministro das Relações Exteriores do Brasil], 'Olha, Celso, tem um problema, essa reunião vai acabar sem acordo, e eles vão culpar o Brasil, a China, a Índia, Rússia. Precisamos encontrar uma solução. Aí propus que o Celso ligasse para os chineses e marcasse uma reunião paralela. Isso foi entre Brasil, China, Índia e talvez África do Sul. A Rússia, penso eu, não estava lá. E nesta reunião, imaginem a nossa surpresa quando Hillary Clinton souber disso e tentar entrar na reunião. Os chineses não deixaram. Todos esses chineses, tão nervosos atrás da porta, e depois vem Obama. Obama quis entrar e os chineses não deixaram. A China estava sendo representada por Jiabao [Wen Jiabao, o primeiro-ministro].

“Aí deixamos Obama entrar, Obama disse: 'Vou sentar ao lado do meu amigo Lula para não ser atacado aqui.' Então ele sentou ao meu lado e começou a falar sobre o acordo, e dissemos que não havia acordo. E depois tinha esse chinês, um negociador, ele estava tão bravo com o Obama, ele estava de pé, falando em mandarim, ninguém entendia nada, pedimos uma tradução, o Jiabao não permitiu, mas a impressão, pela gesticulação dele, foi que os chineses estavam a lançar todo o tipo de nomes a Obama, ele falou agressivamente, apontando o dedo, e Obama disse: 'Ele está zangado.' A embaixadora brasileira, que disse entender um pouco de mandarim – ela disse que ele usou algumas palavras bem pesadas.

“O facto concreto é que nesta reunião acumulámos muita credibilidade, porque nos recusámos a culpar os chineses. Lembro-me de uma sessão plenária em que Sarkozy, Obama e eu estávamos programados para discursar. Eu fui o último orador. Quando cheguei ao plenário não havia nada, nada escrito num pedaço de papel. Eu disse a um dos meus assessores, por favor, saia, prepare alguns pontos de discussão para mim, e quando ele saiu da sala me chamaram para falar; eles inverteram o cronograma. Eu estava muito nervoso. Mas naquele dia fiz um bom discurso. Foi aplaudido de pé. Não sei que tipo de bobagem eu disse [risos]. Então Obama começou a falar. Ele não tinha nada a dizer. Então surgiu um boato crescente no plenário: ele acabou fazendo um discurso que ninguém percebeu. E então com Sarkozy, a mesma coisa.

“O que eu tinha falado era sobre o papel do Brasil na questão ambiental. Vou pedir a alguém do Partido dos Trabalhadores que encontre este discurso para você. A nova tendência no Brasil é tentar comparar políticas entre mim e Bolsonaro. Você não pode aceitar a afirmação dele de que as ONGs estão incendiando a Amazônia. Quem queima a Amazônia são seus eleitores, empresários, gente de muito sangue ruim, gente que quer matar tribos indígenas, gente que quer matar pobre.”

Esta neste artigo foi publicado originalmente em Ásia Times. 

Pepe Escobar, um veterano jornalista brasileiro, é o correspondente geral do jornal com sede em Hong Kong Asia Times. Seu último livro é "2030. " Siga-o no Facebook.

 

12 comentários para “BRICS foi criado como ferramenta de ataque, diz Lula preso"

  1. Setembro 11, 2019 em 13: 44

    Pepe – Por favor leia Land for the Many editado por George Monbiot. Apresenta claramente o problema do “colonialismo interno” no Reino Unido, onde 1% da população possui 50% da terra! O movimento de solidariedade que podemos construir em todo o mundo vai além da velha direita/esquerda, baseado no direito humano à terra por direito de nascença. Quero falar contigo!

  2. LJ
    Setembro 3, 2019 em 18: 22

    Interessante, aparentemente Lula ainda não entendeu o que aconteceu com ele. Talvez Wilma saiba. Ela foi inteligente o suficiente para ficar fora da prisão como uma boa colaboradora. Isso é bom, Pepe. Infelizmente para o Brasil, a China estava a jogar o jogo longo na reunião em que algum falante anónimo de mandarim foi autorizado a desabafar porque Obama tinha sido autorizado a entrar e sentar-se ao lado de Lula e envenenar a reunião, impedindo assim que qualquer coisa fosse realmente realizada. . Aquele Obama, ah, ele era um operador tranquilo. Ele levou o trabalho a sério. Onde é que eles encontram estas pessoas,? ah, sim, Harvard Law School. fundada em 1638, não foi? Vemos esta mesma besteira acontecer hoje a sério, à medida que a administração Trump e a China impõem sanções recíprocas. Este passo está atrasado, mas os chineses estavam então a tentar obter mais e mais e até agora conseguiram o suficiente, eu acho. Lula estava jogando damas. Fazendo matemática básica. Não há derivados aqui. Sem algoritmos. Sem pensar nos cantos. Uma fantasia socialista. Eu gostaria que fosse tão simples e tenho certeza de que Lula também o faz. Quem sabe o que Putin, Lavrov e Medvedev estavam pensando? Sem dúvida eles demoraram muito.

  3. Sam F
    Setembro 3, 2019 em 15: 58

    Obrigado a Pepe Escobar e CN por estes insights, muito apreciados.

  4. Lírio
    Setembro 3, 2019 em 07: 30

    Isso é o que eu acho. A política dos EUA nas últimas décadas tem sido desastrosa e demasiado dispendiosa para todos os envolvidos. A maioria dos estadistas percebeu que só podemos sobreviver neste planeta em paz. Mas não os idiotas dos EUA. Eles nunca aprendem com seus erros.
    Existem muitos outros problemas para resolver – quanto mais cedo melhor.

    Que bom saber das novidades sobre Lula. Obrigado a Pepe Escobar e CN.

  5. David H
    Setembro 2, 2019 em 21: 48

    Como Jeff disse, “instrutivo”. O verdadeiro negócio realmente ressoa. Acho que estava lá esperando para ser pego... qwacks como ressonância mórfica, talvez?

    Apesar do título (e apesar de alguns dos meus receios), penso que os antigos BRICS eram menos perigosos que Bolton, Bibi, MbS, Pompeo e Trump no momento presente. Lula pode ser o único elo que resta que poderia fazer com que a China olhasse com bons olhos para os sul-americanos e norte-americanos que não queriam que esses NINCOMPOOPS da DOUTRINA DE CHOQUE assumissem o controle.

    Se Trump ainda tiver algum tipo de cérebro, ele tirará o cara da prisão.

    Não gosto do que está acontecendo em Xinjiang, mas AFAICS é a coisa do bigode de gato mais perto do mal menor. Algo me diz se o Ocidente trabalharia um pouco mais com RICS que de alguma forma este plano de fraturar todos os Estados Unidos, arrefecer o material a -260 graus F, e enviá-lo 4,800 milhas… não seria tanto o grande item no grande esquema das coisas.

  6. John Wright
    Setembro 2, 2019 em 16: 28

    Lula deveria ter passado mais tempo conversando com os chineses sobre a abordagem deles para contornar a hegemonia do dólar americano. Se ele não tivesse sido tão ingénuo a este respeito, poderia estar agora no cargo e não na prisão por acusações forjadas.

    Esperamos que Lula saia da prisão em breve e seja capaz de influenciar melhor as relações internacionais neste momento crítico da história da humanidade.

    O capitalismo financeiro voraz não irá sucumbir sem uma luta muito destrutiva.

    [Mas será que os chineses, os russos, os indianos ou os brasileiros reinarão nos seus bilionários?]

  7. Jeff Harrison
    Setembro 2, 2019 em 12: 30

    Muito instrutivo. Ao longo da última década, cheguei à conclusão de que os EUA são a fonte mais poderosa do mal no mundo.

    • Raymond Comeau
      Setembro 2, 2019 em 13: 38

      Você, senhor, está 100% correto.

    • Lírio
      Setembro 3, 2019 em 07: 08

      Isso é o que eu acho. A política dos EUA nas últimas décadas tem sido desastrosa e demasiado dispendiosa para todos os envolvidos. A maioria dos estadistas percebeu que só podemos sobreviver neste planeta em paz. Mas não os idiotas dos EUA. Eles nunca aprendem com seus erros.
      Existem muitos outros problemas para resolver – quanto mais cedo melhor.

      Que bom saber das novidades sobre Lula. Obrigado a Pepe Escobar e CN.

  8. Bob Van Noy
    Setembro 2, 2019 em 09: 04

    Consortiumnews tornou-se, com seu novo recurso Live, o site de notícias mais impressionante disponível atualmente. Podemos ver, observando a combinação do CN Live, e agora o artigo de Pepe Escobar, como as notícias reais são montadas por grandes escritores. Indo a lugares importantes, conseguindo entrevistas oportunas e interagindo com os jornalistas, como as notícias reais são montadas. Se você prestar muita atenção, poderá ver o verdadeiro Lula da Silva, o presidente Obama e algumas decisões simples, mas extremamente importantes, de um líder mundial, mudando tudo. Robert Parry deve estar muito satisfeito em algum lugar. Obrigado CN e Pepe Escobar…

    • Pular Scott
      Setembro 3, 2019 em 09: 54

      Ouça ouça!

  9. Setembro 2, 2019 em 04: 52

    Interessantes, especialmente as anedotas sobre Obama.

    É claro que o Brasil, na ascensão de Bolsonaro e em várias atividades legais questionáveis ​​em torno dos ex-presidentes, sofreu efetivamente um golpe suave por parte das mesmas pessoas que estão trazendo para vocês o espetáculo feio na Venezuela.

    Apenas uma palavra sobre o uso de uma palavra.

    “Uma das maiores economias do mundo foi tomada por neoliberais radicais, praticamente sem qualquer luta”

    Penso que é melhor evitar o uso de “neoliberal”.

    Primeiro, acho que faz pouco sentido, mas ainda mais importante, essa palavra é usada repetidamente pela Alt-right como um termo de desprezo.

    “Liberal” é uma das melhores palavras políticas da nossa língua. Tem uma história e tradição imensamente ricas.

    Mas os ultraconservadores de todo o mundo – e especialmente nos Estados Unidos e em Israel – sempre odiaram o termo e odiaram as pessoas que representava.

    Longos esforços foram feitos nos Estados Unidos para transformar “liberal” num termo pejorativo.

    E penso que este uso de “neoliberal” contribui muito para isso.

    Pequeno ponto, talvez, mas acho que vale a pena comentar.

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